TURISMO, NATUREZA E CONSERVAÇÃO - Flora, Fauna e Recursos Hídricos | 02-07-2024 | 313 | Luc Fecchio
 
 
 
 
 

AMAZONAS | O desmatamento, as queimadas e as mudanças climáticas estão entre as causas da alteração do regime hidrológico dos rios da Amazônia, que tem se tornado mais intenso nos últimos anos. Isso tem levado à ocorrência de cheias e secas mais severas, com menor intervalo de tempo.

Um exemplo foi a seca histórica de 2023, que causou a maior queda nos níveis dos rios já registrada na região. No Rio Negro, o nível da água no porto de Manaus chegou a 14,75 m, o menor nível desde o início da série histórica, em 1902.

De acordo com o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Jochen Shöngart, somente nessas duas primeiras décadas do século XXI foram registrados nove eventos de cheias severas, o mesmo número registrado em todo o século passado.

Shöngart destacou ainda que o aumento da amplitude da cheia e da vazante na Amazônia apresentou uma variação de 1,6 metro. Isso faz com que os rios tanto sequem antes do esperado quanto transbordem de forma inesperada. Essa alteração traz impactos especialmente nas áreas de florestas alagadas, com grandes consequências para as atividades econômicas e para as populações ribeirinhas da Amazônia, que dependem desses recursos para sua sobrevivência.

?O curso de inundação, que tem sua previsibilidade e regularidade, é o principal determinante de processos geomorfológicos, ciclos biogeoquímicos e do crescimento da biota adaptada a esse regime. Além disso, controla as interações biológicas nas áreas alagadas e até atividades econômicas das populações ribeirinhas, como agricultura e pesca?, explicou o pesquisador durante debate sobre secas e enchentes na Amazônia, na 76ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Belém.

O pesquisador do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, Ayan Fleischmann, destacou que esse aumento no regime de secas e cheias severas tem impactado as áreas de várzeas. Nos últimos anos, em 23% das áreas de várzeas no baixo Amazonas, a duração do período de inundação aumentou mais de 50 dias por ano.


Secas

Tefé (AM), 30/09/2023 ? Uma pesquisadora realiza a medição e coleta de tecidos de botos mortos em um lago no município de Tefé, no Amazonas. Para o ICMBio, há indícios de que a seca prolongada e a temperatura elevada na região possam ter causado as mortes dos animais.

As secas têm sido extremamente severas. Durante a seca de 2023, o Lago Tefé, no Médio Solimões, secou 75%, chegando a baixar praticamente 30 cm por dia. Na região, outros lagos ficaram 90% secos.

A seca extrema na Amazônia levou à morte de 209 botos no Lago Tefé e em Coaraci, devido à alta temperatura dos lagos. No dia 28 de setembro, 70 botos morreram quando a temperatura da água atingiu 39,1°C.

"Isso é muito preocupante. Especialistas em mamíferos aquáticos afirmam que, se encontrarmos três carcaças de boto em poucos dias, já é um alerta. Se encontrarmos essa quantidade, é uma tragédia. Peixes morrendo em secas extremas é comum na Amazônia, mas botos é muito raro. Isso foi uma catástrofe sem precedentes", lamentou o pesquisador.

Estudos realizados pelo Mamirauá, instituição ligada ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), concluíram que os animais morreram por hipertermia, devido às altas temperaturas nos lagos. Medições realizadas pelo instituto em lagos da região mostraram que, em mais de 25 deles, foram registradas temperaturas de 37°C.

?O que aconteceu com o Lago Tefé e com os botos foi que o lago secou muito, ficou muito raso. Como temos muita radiação solar, o lago aqueceu facilmente, gerando picos de temperatura de mais de 40°C em toda a coluna dágua, em até 2 metros de profundidade. Além disso, não havia refúgio térmico para os animais?, complementou.


Cenário

Segundo Fleischmann, o cenário atual apresenta um contraste: há mais chuvas na região norte da Amazônia e menos chuvas na região sul. Em parte, essa diferença no regime de chuvas pode ser explicada pelo maior desmatamento, queimadas e implantação de grandes projetos, como hidrelétricas, na parte sul da Amazônia, enquanto na parte norte estão as áreas mais conservadas.

Quanto menor a quantidade de árvores para o processo de evapotranspiração, menor é a geração de vapor de água para a atmosfera, o que reduz o percentual de chuvas e aumenta a temperatura na região.

Para este ano, o pesquisador mostra-se apreensivo com a possibilidade de uma nova seca severa, devido a um regime hidrológico inferior ao esperado. Monitoramento realizado pelo Serviço Geológico do Brasil, da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), mostra que, no período de 21 de maio a 19 de junho, a Bacia do Rio Amazonas apresentou um quadro de chuvas abaixo do esperado em grande parte da região.

Os principais déficits foram registrados nos afluentes Purus e Madeira, que apresentam níveis abaixo da normalidade. Aripuanã, Beni, Coari, Guaporé, Içá, Japurá, Javari, Ji-Paraná, Juruá, Jutaí, Mamoré, Marañon, Napo, Tefé, Ucayali e o curso principal do Solimões também estão abaixo do esperado.

Fleischmann destaca que, diante desse cenário, é preciso investir em ações para mitigar o sofrimento das populações da região. Em 2023, a seca isolou milhares de pessoas, dificultando o acesso a alimentos, medicamentos e, principalmente, água potável.

"Esse é o paradoxo da Amazônia: tem muita água e muita gente passando sede", resumiu. "Precisamos urgentemente criar programas de acesso à água na Amazônia. Não é porque estamos na maior bacia hidrográfica do mundo que essa água é acessível para consumo humano", alertou.

Além de investimentos no abastecimento de água e tratamento de resíduos orgânicos, o pesquisador aponta como necessárias ações como:

  • Construção de cisternas para captação de água da chuva.
  • Escavação de poços artesianos mais profundos, para atingir o lençol freático.
  • Distribuição de kits emergenciais de tratamento de água.

A Amazônia tem uma imensa reserva de água subterrânea na forma de aquíferos. De acordo com o professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Ingo Daniel Wahnfried, um dos principais obstáculos para estudar o Aquífero Amazônia é a complexidade do sistema, composto por camadas de diferentes profundidades, que variam de 20 m a mais de 250 m.

"Na Amazônia, temos diferentes aquíferos em posições e profundidades variadas, com formações geológicas distintas. Em algumas áreas, onde estão as comunidades ribeirinhas, os aquíferos aluvionares têm cerca de 22 metros de profundidade, sendo essenciais para o abastecimento dessas comunidades", explicou.

O professor ressalta que, antes de perfurar poços, é necessário avaliar a vulnerabilidade do Aquífero Amazônia à contaminação por metais pesados e outras substâncias, especialmente nas áreas urbanas das capitais amazônicas.

"Aquíferos contêm sedimentos com grande quantidade de elementos químicos. A água em contato com esses sedimentos pode absorver substâncias prejudiciais à saúde. Identificamos arsênio e manganês em algumas análises, o que demanda mais investigação", concluiu.